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O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS) aprovou, por meio da Deliberação Plenária Ad Referendum nº 014/2025, nota pública que expressa preocupação com os rumos da formação profissional a partir do novo Marco Regulatório da Educação a Distância (EaD), estabelecido pelo Decreto nº 12.456/2025. A decisão institucional reafirma o compromisso da autarquia com a qualidade do ensino de Arquitetura e Urbanismo e a valorização do ensino presencial como base essencial da formação na área.
A nota, redigida pelo Colegiado de Coordenadores de Curso de Arquitetura e Urbanismo do CAU/RS, aponta que o decreto, ao permitir a oferta de cursos na modalidade a distância ou semipresencial com uma carga mínima de atividades presenciais, ignora a natureza prática, crítica e coletiva do ensino em Arquitetura e Urbanismo. Segundo o texto, “a prática em Arquitetura e Urbanismo não se trata de uma etapa complementar, mas de um eixo estruturante do processo de ensino-aprendizagem”.
Outro ponto de destaque é a ausência de diálogo com instituições formadoras e conselhos profissionais no processo de construção do novo marco legal. Para o CAU/RS, a medida representa uma inversão perigosa do papel da tecnologia na educação, tratando o EaD como substituto da formação presencial em vez de um recurso de apoio pedagógico.
A nota reforça que o ensino de Arquitetura e Urbanismo exige espaços de encontro, escuta ativa e vivência concreta dos territórios, sendo incompatível com metodologias exclusivamente digitais. “Arquitetura não se aprende por transmissão unidirecional de conteúdo. Ela se constrói em processo coletivo”, afirma o documento.
Leia a nota na íntegra:
NOTA PÚBLICA SOBRE O MARCO REGULATÓRIO DO EAD
O Governo Federal assinou, em 19 de maio de 2025, o Decreto 12.456, que dispõe sobre a oferta de educação a distância (EaD) por instituições de educação superior em cursos de graduação, e apresenta a nova política de EaD com rótulo de evolução e instrumento de ampliação ao acesso para a educação superior. Mas, seu conteúdo, ao renunciar valores fundamentais da educação, causa preocupação e estranheza às instituições de ensino superior e conselhos profissionais de diversas áreas do conhecimento.
Causa preocupação porque uma ferramenta de apoio ao ensino é promovida a método de formação profissional. E, estranheza, pela falta de diálogo com as bases que trabalham com a formação e regulamentação profissional em todo o território nacional.
O Colegiado de Coordenadores de Curso de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul, instituído no âmbito do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/RS), vem se manifestar sobre o tema, porque entende o percurso no ensino superior como fundamento para a formação de profissionais e cidadãos que atuam no mercado de trabalho, cumprindo funções de sérias responsabilidades perante a sociedade.
O Decreto citado define que os cursos de graduação podem ser ofertados no formato presencial (permitida a inclusão de 30% da carga horária total do curso no formato de ensino a distância), semipresencial e a distância. Isso representa uma inversão grave do papel da tecnologia na educação: ao invés de apoiar o contato entre docente e discente e ampliar as possibilidades de experimentação, ela é convertida em substituta do processo educativo, ignorando a complexidade da formação em campos que exigem prática, sensibilidade espacial, escuta ativa e construção coletiva do conhecimento.
A formação superior, nos diversos campos de atuação, tem valor expressivo no desenvolvimento social e econômico do país, refletindo em produção, avanços científicos, preservação ambiental, saúde, segurança e qualidade de vida da população. Em mais de 20 anos de atuação no país, a Educação a Distância tem se mostrado uma alternativa com tendência ao barateamento de custos para grupos empresariais que oferecem o serviço, mas pouco efetiva em critérios de qualidade. “Menos de 1% dos cursos EaD conseguem nota máxima em avaliação do MEC” aponta a manchete do site [1] G1 referindo-se aos resultados do Enade 2023 [2] que avaliou, no ano de 2023, cursos de diversas áreas do conhecimento, entre eles, Arquitetura e Urbanismo. Neste caso, esse valor se traduz diretamente na qualidade dos espaços urbanos, das habitações, das infraestruturas públicas e dos territórios coletivos. Uma formação fragilizada implica em impactos diretos na segurança das edificações, na inclusão social, na sustentabilidade ambiental e na efetivação do direito à cidade.
O manual da Cine Brasil [3] classifica centenas de cursos de graduação no país, indicando a necessidade de formações próprias para atuação em cada setor da sociedade atual. No entanto, pelo Decreto, apenas os cursos de Direito, Medicina, Enfermagem, Odontologia e Psicologia podem ser ofertados exclusivamente no formato presencial, devido, “à centralidade de atividades práticas, laboratórios presenciais e estágios”, conforme notícia do Palácio do Planalto [4]. Ora, é razoável que, entre as centenas de cursos de graduação no país, apenas cinco se desenvolvam essencialmente com atividades práticas, laboratórios presenciais e estágios? A prática em Arquitetura e Urbanismo é constitutiva da própria natureza da formação: não se trata de uma etapa complementar, mas de um eixo estruturante do processo de ensino- aprendizagem. O canteiro de obras, os laboratórios de projeto, os ateliês, os levantamentos de campo e as visitas técnicas são, juntos, a base da compreensão de fenômenos complexos como moradia, mobilidade, paisagem e construção do espaço.
Vinculada ao Decreto, a Portaria MEC nº 378, de 19 de maio de 2025, prevê que alguns cursos, entre eles, a Arquitetura e Urbanismo, podem ser ofertados no formato semipresencial, com pelo menos 40% (quarenta por cento) de atividades presenciais e 20% (vinte por cento) de atividades presenciais ou síncronas mediadas, o que garante apenas 40% (quarenta por cento) de atividades presenciais de fato.
Cientes da responsabilidade técnica, ética e social do arquiteto e urbanista, que atua nos espaços construídos onde se desenvolvem as atividades humanas, entendemos que o processo de ensino e aprendizagem se pauta na análise, reflexão crítica, contrapontos de argumentos e soluções. Arquitetura não se aprende por transmissão unidirecional de conteúdo. Ela se constrói em processo coletivo, através da escuta dos territórios, da empatia, da capacidade de lidar com conflitos e da vivência concreta dos espaços urbanos. Tais competências são intransferíveis para modelos de ensino mediados exclusivamente por plataformas digitais ou conteúdos gravados.
O conhecimento é promovido através da pesquisa, debate, percepção do ambiente, análise do território, de condicionantes reais, da vocação de cada lugar e seu papel social. Nas salas de aula, ateliês, laboratórios, visitas técnicas e trabalhos de campo, todos os recursos são mobilizados, desde o lápis até tecnologias de inteligência artificial, para que os estudantes de arquitetura e urbanismo construam coletivamente o conhecimento. Em todos estes espaços de ensino, o professor conduz os estudantes ao protagonismo de seu aprendizado, através do desenvolvimento de soluções de projeto, estudos de materiais e técnicas construtivas, manejo de equipamentos, análise do comportamento estrutural de sistemas e materiais e conhecimento de canteiro de obras.
A base formativa e pedagógica dos Ateliês ou Laboratórios de Projeto de arquitetura, paisagismo e urbanismo (eixo de conhecimento estruturante de um curso de Arquitetura e Urbanismo, como referido) se pauta na prática do assessoramento, onde o estudante testa soluções projetuais para determinado problema e, a partir da reflexão e do diálogo com o professor e com colegas, encontra uma resposta adequada, que atenda aos critérios ambientais, funcionais, estéticos, tectônicos e éticos do problema projetual. Essa prática do assessoramento é primordial e fundamental para o desenvolvimento do processo criativo e intuitivo do profissional arquiteto e urbanista, e não é possível de ser realizada à distância ou em um ambiente virtual.
Este Colegiado de Coordenadores assegura que a transmissão de conteúdo para o estudante solitário, proposta pelo ensino a distância ou semipresencial, não beira o mínimo dessa vivência dos espaços presenciais e coletivos. O estudante não pode ser um mero espectador de conteúdos prontos. O estudante deve ser estimulado a desenvolver a capacidade de raciocínio criativo e trabalho colaborativo. E isso exige espaços de encontro, onde o erro e a reflexão fazem parte do processo formativo. No ensino de projeto a interação entre colegas, a discussão em sala, a revisão crítica e o acompanhamento presencial do docente são fundamentais para a formação de um pensamento espacial complexo. A mediação virtual, quando exclusiva, é incapaz de promover esse tipo de aprendizado.
Nosso questionamento se destina à decisão do governo, que emitiu o decreto que atinge a formação profissional sem uma forma democrática de escuta e debate sobre processos de ensino e aprendizagem que refletem nas atribuições técnicas de cada profissão. O decreto estabelece limites rasos para a educação superior – a palavra “mínimo” é citada mais de 10 vezes no documento – e os mínimos definidos não estabelecem relação com princípios de qualidade e propósitos coletivos. Ao pautar a formação profissional por métricas de carga horária mínima, e não por diretrizes de qualidade e impacto social, o decreto rebaixa o papel da educação superior a um serviço conteudista, desprovido de relação com os desafios reais do território. Tal visão tecnocrática ignora a diversidade das formações e as especificidades das profissões reguladas.
A Arquitetura e Urbanismo, profissão que se concretiza no território e espaços construídos, reflete na segurança, saúde e qualidade de vida da população e exige formação com ensino presencial. O ensino a distância ou semipresencial não serve para os arquitetos e urbanistas, não serve para a sociedade. Defendemos a inovação pedagógica, mas não à custa da precarização da formação. O que se espera de um arquiteto e urbanista não é apenas que domine ferramentas ou normas, mas que compreenda o papel social da arquitetura, que se engaje com os problemas urbanos e que atue com responsabilidade técnica. Para isso, é preciso formação sólida, vivencial, coletiva e eticamente comprometida com a cidade real.
Redigida pelo Colegiado de Coordenadores de Curso de AU – RS
[1] Fonte: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2025/04/11/menos-de-1percent-dos-cursos-ead-conseguem-nota-max
ima-em-avaliacao- do-mec.ghtml
[2] O Enade é uma parte do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) e o resultado do exame contribui para os Indicadores de Qualidade da Educação Superior.
[3] Cine Brasil: Classificação Internacional Normalizada da Educação adaptada para os cursos de graduação e sequenciais de formação específica do Brasil.
[4]https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2025/05/governo-federal-regulamenta-nova-politica-de-educacao-a- distancia
